VIOLAÇÕES DE DIREITOS HUMANOS DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA
NA BAHIA NO CONTEXTO DA PANDEMIA
Abril 2021
O presente texto analisa a
situação dos direitos humanos das pessoas com deficiência, e aponta as
principais violações que ocorrem no contexto em curso da pandemia. A análise
aqui apresentada abrange a situação das pessoas com deficiência no Brasil, ao
mesmo tempo que dá um enfoque no estado da Bahia, onde ocorrem os casos de
violações citados.
Esse trabalho é o resultado de um
processo coletivo e participativo conduzido pela Vida Brasil junto a lideranças
de movimentos e organizações de pessoas com deficiência na Bahia, dentre as
quais: Apalba- Associação de Pessoas com Albinismo na Bahia, Abadef- Associação
Baiana de Pessoas com Deficiência Física, ABC- Associação Baiana de Cegos, Rede
de Pessoas com Deficiência na Bahia, Associação de Pessoas com Deficiência de
Paulo Afonso, FCD- Fraternidade Cristã de Pessoas com Deficiência, ASDEV- Associação
Santoantoniense dos Deficientes Visuais, e ONCB- Organização Nacional de
Cegos do Brasil. Além de Salvador, participaram deste processo lideranças de
movimentos de pessoas com deficiência do interior da Bahia, como Vitória da
Conquista, Lauro de Freitas, Paulo Afonso e Santo Antônio de Jesus.
O trabalho é parte do processo em curso desenvolvido pelo Núcleo Bahia de Monitoramento
das Direitos Humanos no contexto da Covid-19, formado por organizações da
sociedade civil de defesa de direitos. O Núcleo busca acompanhar e visibilizar
os casos e situações de violações de direitos humanos na Bahia, de forma
articulada com um processo de monitoramento no âmbito nacional, conduzido por
redes de organizações.
A situação das pessoas com
deficiência na Bahia e no Brasil, no contexto da pandemia, é caracterizada por
uma série de violações de direitos humanos, individuais e coletivos. Essas violações dos direitos humanos podem ser
resumidas da seguinte forma:
1.
Divulgação
insuficiente de medidas preventivas contra a Covid-19, adequadas para pessoas
com deficiência
2.
Confinamento,
isolamento e violência doméstica
3.
Mobilidade
das pessoas com deficiência ainda mais reduzida
4.
Violência
e exploração sexual
5.
Direito à
Saúde ameaçado
a.
Acesso
precário aos serviços de atenção básica
b.
Retrocesso
e desmonte do sistema de saúde mental
c.
Indefinição
do plano de vacinação contra Covid-19
6.
Desmonte das
políticas de educação inclusiva
7.
Retrocesso
no direito ao emprego, proteção social e renda
a.
Restrição
do BPC
b.
Acesso
reprimido ao mercado de trabalho
8.
Mecanismos
de participação e controle social fragilizados
Os atos de violação dos direitos
humanos foram perpetrados por diversos atores, dentre os
quais familiares ou membros de comunidades onde residem as pessoas com
deficiência, diversos agentes e órgãos públicos, ou ainda agentes do poder
econômico. Mas o principal destaque é do governo federal, que demostrou
negligência com o segmento: restringiu as principais políticas sociais para
pessoas com deficiência, resultando em uma serie de violação de direitos humanos, civis, sociais e
econômicos, como também atacou os próprios fundamentos da inclusão, que sustentam
toda legislação nacional e internacional: é o que mostra a fragilização e o
desmonte das políticas de saúde mental, de educação inclusiva, da proteção
social e de emprego das pessoas com deficiência.
Ao final desta análise, algumas recomendações
são formuladas.
1-
Falta
de divulgação medidas preventivas adequadas para pessoas com deficiência
As medidas preventivas para
enfrentar o Covid-19, definidos pelos órgãos de saúde competentes e divulgados
pela mídia, dão orientações para população poder se prevenir do vírus. No
entanto, as medidas não tomam em conta as especificidades de muitas pessoas com
deficiência motora, intelectual, visual e auditiva.
A título de exemplos:
-
O
distanciamento social, para começar, não pode ser respeitado por pessoas com
deficiência física ou visual, que precisam do apoio de cuidadores e do contato
físico.
-
Parte das
pessoas autistas e com deficiência intelectual não consegue usar a máscara.
-
A quase
totalidade das máscaras não atende às necessidades de comunicação das pessoas
surdas e aos intérpretes que falam Libras: a boca acompanha e complementa os
sinais feitos com as mãos, e deveria permanecer visível para garantir uma boa
comunicação.
-
Muitas
pessoas com deficiência intelectual não conseguem entender as medidas
preventivas.
-
No caso
das pessoas com deficiência visual, o uso da parte interna do braço para conter
parte do espirro, não é indicado para familiares e acompanhantes: a pessoa cega,
quando anda acompanhada, costuma por a mão no cotovelo da pessoa ao seu lado.
Medidas e materiais específicos
de prevenção para os diversos tipos de deficiência existem, mas são pouco
divulgados, e não atingem a maior parte das famílias das pessoas com
deficiência de classe pobre.
2-
Confinamento,
isolamento e violência doméstica
O confinamento das famílias nas
suas casas provocou o isolamento social de muitas pessoas com deficiência
dentro das suas famílias. Organizações relatam o aumento das situações de
dependência, negligência, exploração, assim como dos casos de violência
doméstica, violência patrimonial, psicológica e física.
As pessoas com deficiência abandonadas ou que não
desejam conviver com as suas famílias, não encontram local de acolhimento, como
uma casa de apoio, e ficam reféns da violência doméstica e patrimonial, como citado no interior do estado da Bahia, a
exemplo de Vitória da Conquista.
Pessoas com deficiência
intelectual e com transtornos mentais, na ausência de atendimento em saúde e
reabilitação, ou de acesso a remédios de uso contínuo, passaram a ser medicamentadas
em excesso e sedadas em casa. Em outros casos, essa ausência de atendimento e
de remédios de uso contínuo provocou surtos psicóticos. Algumas pessoas foram
internadas à força em hospitais psiquiátricos.
3-
Mobilidade
das pessoas com deficiência ainda mais reduzida
Toda população teve que enfrentar
restrições de mobilidade no contexto da pandemia, mas as pessoas com
deficiência e com mobilidade reduzida foram muito mais afetadas. As condições
de acessibilidade do transporte público já eram precárias antes da pandemia, todavia
tornaram inviável o deslocamento da maior parte das pessoas com deficiência.
Nas cidades, as frotas de ônibus foram
reduzidas, e o seu uso pela maioria das pessoas com deficiência tornou-se
impraticável, em razão do tempo de espera e de sua lotação. Por outro lado, muitas
pessoas com deficiência no interior ou na região metropolitana de Salvador
dependem de transporte intermunicipal, que também piorou, para ter acesso a
serviços especializados de educação, saúde e reabilitação em outras cidades. Um
exemplo comum e significativo é de pessoas que moram no interior e que não
conseguem mais ter acesso ao hospital Sarah Kubitschek, centro de referência
para reabilitação de pessoas com deficiência motora.
A falta de mobilidade inviabilizou
o exercício dos direitos econômicos e sociais para maioria das pessoas com
deficiência.
4-
Violência
e exploração sexual
Organizações de pessoas com deficiência estimam que há
um aumento dos casos de exploração e violência sexual, particularmente
dirigidas a meninas com deficiência intelectual e auditiva. A maioria desses
casos ocorre de forma escondida, com a participação de familiares ou de pessoas
próximas.
Dois casos recentes na Bahia foram denunciados e
divulgados pela imprensa.
Em Vitória da Conquista, em setembro de 2020, um homem
levou uma vizinha adoentada e sua filha para um hospital. Enquanto a mãe estava
sendo atendida, a jovem de 18 anos, com deficiência intelectual, ficou no carro
e foi levada para um motel onde foi estuprada. O criminoso afirma que o ato foi
feito com o consentimento da vítima, e não foi preso, apesar da denúncia de
estupro de vulnerável ser registrada e ter ocorrido manifestações em Vitória da
Conquista exigindo justiça. A família expressou no início de 2021 o medo de
sofrer represálias, já que o estuprador mora na mesma rua da vítima.
Outro caso é do ex-prefeito de Serrolândia, no
Piemonte da Diamantina, Jaime Franco, procurado pela Polícia Civil por ter
estuprado duas irmãs com deficiência intelectual, hoje com 21 e 23 anos de
idade. O abuso ocorria desde que elas tinham 5 anos de idade, com o
consentimento dos pais em troca de dinheiro. Um desses abusos foi filmado em
fevereiro de 2021, mas o homem não foi preso, segundo a polícia porque não
houve flagrante.
5-
Direito
à Saúde ameaçado
·
Acesso
precário aos serviços de atenção básica
As pessoas com deficiência que
dependem do sistema de saúde pública enfrentam uma grave restrição do seu acesso
à serviços de saúde básica. Dentre as principais queixas:
-
Faltam
remédios de uso contínuo (para diabete, pressão alta, ansiolíticos, contra
depressão, medicação para insônia, para síndromes raras etc.)
-
Faltam
insumos básicos no SUS (material hospitalar, fraldas geriátricas etc.)
-
Cirurgias
eletivas foram suspensas em hospitais públicos.
·
Retrocesso
e desmonte do sistema de saúde mental
Em matéria de saúde mental, o Ministério da Saúde
propõe a revisão da Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e de mudanças no modelo
assistencial em saúde mental, com base nas “Diretrizes para um Modelo de
Atenção Integral em Saúde Mental no Brasil”. O documento, segundo o Conselho
Nacional de Saúde (em Nota de repúdio de 04/12/2020),
representa retrocessos sustentados por um modelo biomédico psiquiátrico
centralizador e hospitalocêntrico diante do processo em curso denominado “Reforma
Psiquiátrica, o Modelo de Atenção Psicossocial e a Desinstitucionalização no
Brasil”. Existe um risco grave de retrocesso e “modernização” de velhas
instituições e práticas que ameacem a dignidade humana, os direitos humanos e o
cuidado em liberdade no campo da saúde mental e atenção psicossocial.
·
Indefinição
do plano de vacinação contra Covid-19
O plano nacional de imunização anunciado
pelo governo federal não inclui todas as pessoas com deficiência, e prioriza
alguns grupos (deficiências severas, comorbidade...). Tem uma indefinição de
como será definida a deficiência severa, como cada estado e município vai
organizar a agenda de vacinação das pessoas com deficiência e quais grupos serão
priorizados (em razão da insuficiência de orientações por parte do governo
federal e do Ministério da Saúde). Pessoas cegas e pessoas com albinismo, por
exemplo, temem não ser incluídas como grupos prioritários, apesar de poder ser
consideradas como grupos de risco.
6-
Desmonte
das políticas de educação inclusiva
No período em que ocorre a
pandemia, o governo federal atuou na tentativa de desmontar a política de
educação especial na perspectiva da educação inclusiva.
O Decreto nº 10.502, de 30 de
setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial, corre
o risco de provocar a exclusão escolar de pessoas com deficiência no país. Esse
Decreto 10.502 viabiliza e legitima formatos educacionais na contramão das práticas
inclusivas, corroborando para a segregação de tais sujeitos, em contraponto à
legislação nacional e internacional em matéria de inclusão escolar (Art. 24 da
Convenção internacional sobre os direitos das pessoas com deficiência, da qual
o Brasil é signatário desde 2008, e Art. 28 da Lei Brasileira de Inclusão,
2015, que comprometem o estado brasileiro em assegurar “um sistema educacional
inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida”).
O Decreto 10.502 teve sua
eficácia suspensa pelo STF, no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI) 6590 em 28/12/2020. Na prática, o decreto não tem
aplicação por força dessa decisão judicial, mas não foi revogado e continua
existindo. A política e as práticas da educação inclusiva permanecem ameaçadas,
considerando inclusive as outras tentativas de asfixia da educação pública pelo
governo federal, a exemplo do esvaziamento do Fundeb.
7-
Retrocesso
no direito à proteção social, renda ao emprego,
As pessoas com deficiência de
famílias de baixa renda ficaram mais pobres desde o início do período da
pandemia, com uma diminuição dos seus meios de sobrevivência e da sua renda. Essa
situação decorre principalmente das restrições de acesso para pessoas com
deficiência no contexto da pandemia a programas de transferência monetária,
como BPC e Auxílio emergencial, e ao mercado de trabalho.
Restrição do BPC
Uma das principais políticas de
proteção social para as pessoas com deficiência de baixa renda, o BPC-Benefício
de Prestação Continuada,
foi duramente atingida durante o período da pandemia.
No período em que ocorre a
pandemia, pessoas perderam o benefício BPC, e não houve novas entradas de
beneficiários.
Por outro lado, as pessoas
beneficiadas pelo BPC tiveram que escolher entre o auxílio emergencial e o BPC.
Essa medida desconhece os propósitos distintos de cada benefício: o BPC serve
para suprir as necessidades da própria deficiência, enquanto o auxílio
emergencial é destinado a suprir as necessidades emergenciais e de
sobrevivência no contexto da pandemia. Um não substitui o outro.
Acesso reprimido ao mercado
de trabalho
As organizações que atuam na
inclusão no mercado do trabalho, a exemplo da Abadef-Associação Baiana de
Pessoas com Deficiência Física, relatam que as empresas passaram a demitir as
pessoas com deficiência no período da pandemia. Por outro lado, não são
registradas novas contratações de pessoas com
deficiência.
Nesse sentido, a Lei de
cotas para pessoas com deficiência no mercado do trabalho,
que completa 30 anos em 2021, é totalmente desrespeitada, desconsiderada e até
esquecida no atual contexto.
8-
Mecanismos
de participação e controle social refreados
Os mecanismos de participação
democrática e de controle social por parte das organizações da sociedade civil,
e especialmente aquelas que defendem e promovem os direitos das pessoas com
deficiência, foram refreados no período da pandemia.
Em primeiro lugar, as
organizações de pessoas com deficiência enfrentam grandes dificuldades para se
manter, devido à redução drástica dos seus recursos no período da pandemia.
Buscam doações e apoios para arcar com suas despesas mensais.
Diversas ações visando apoiar as
pessoas com deficiência no contexto da pandemia foram desenvolvidas pelas
organizações da área, porém de forma isolada e pouco articulada com o poder
público.
Os conselhos dos direitos das
pessoas com deficiência, que existem nos diversos âmbitos da administração
pública (municípios, estado, união), não foram aproveitados como deveriam (ou
poderiam) para enfrentar a pandemia. De forma geral, as políticas
governamentais não envolveram a estrutura existente dos conselhos nem a
participação das organizações da sociedade civil na sua resposta.
Organizações no interior do estado
afirmam ter tentado denunciar situações para conselhos municipais dos direitos
das pessoas com deficiência, e buscar apoio, mas sem resultado. Na realidade,
boa parte dos conselhos municipais é inoperante, e os outros canais de diálogo
com outras instâncias do poder público, a exemplo do Ministério Público, não
funcionam de forma estruturada e eficaz.
ALGUMAS RECOMENDAÇÕES
-
Defender
junto aos órgãos públicos a priorização de todas as pessoas com deficiência nos
planos municipais, estadual e federal de imunização da população contra
Covid-19.
-
Fortalecer
a articulação das organizações da sociedade civil no diálogo com os órgãos de
saúde municipais e estaduais e com outros atores públicos, sobre políticas para
pessoas com deficiência no contexto da pandemia (programas de vacinação,
proteção, etc.).
-
Estimular
uma maior articulação das iniciativas das organizações da sociedade civil e dos
poderes públicos no enfrentamento da Covid-19 para as pessoas com deficiência,
no âmbito municipal, estadual e federal.
-
Produzir
dados sobre pessoas com deficiência no contexto da pandemia, por exemplo com
pesquisas.
-
Implementar
projetos de lei de apoio às organizações de pessoas com deficiência que
enfrentam dificuldades para sua sustentabilidade no contexto da pandemia.
-
Publicizar
as ações dos conselhos de direitos das pessoas com deficiência, a exemplo do Conselho
estadual do direito da pessoa com deficiência (COEDE) na Bahia
-
Promover
uma maior participação das organizações da sociedade civil nos conselhos de direitos,
a exemplo do COEDE.
O BPC- Benefício de Prestação Continuada é um
benefício da Política de Assistência Social, individual, não vitalício e que
garante o pagamento mensal de 01 salário mínimo à pessoa idosa, com 65 anos ou
mais, e à pessoa com deficiência, de qualquer idade. É previsto na constituição
do país (1988) e foi implementado progressivamente a partir de 1996, passando
por várias alterações. O BPC integra a Proteção Social Básica no âmbito do
Sistema Único de Assistência Social – SUAS. Não é necessário para acessá-lo ter
contribuído com a Previdência Social.
Dois critérios
principais existem para seleção de beneficiários do BPC: o critério categórico
(a deficiência) e um critério de vulnerabilidade econômica: para ter direito ao
benefício, a família da pessoa idosa ou da pessoa com deficiência deve possuir
uma renda familiar mensal per capita inferior a ¼ do salário mínimo brasileiro.
O BPC não pode
ser acumulado com outro benefício no âmbito da Seguridade Social (como, por
exemplo, o seguro desemprego, a aposentadoria e a pensão) ou de outro regime,
exceto com benefícios da assistência médica, pensões especiais de natureza
indenizatória e a remuneração advinda de contrato de aprendizagem.