Por Damien Hazard
Co-diretor executivo da
ABONG – Associação Brasileira de ONGsArtigo originalmente publicado no "ICAE Virtual Seminar: Education Post 2015".
Para acessar o artigo com traduzido para o inglês, clique aqui. Para acessar a versão em espanhol, clique aqui.
A educação no processo
de consulta nacional da sociedade civil brasileira sobre agenda pós-2015
A ABONG – Associação Brasileira de ONGs entrou no
processo de discussão da agenda pós-2015 em 2012, por meio de articulações
internacionais da sociedade civil latino-americana e planetária. Em paralelo das
diferentes modalidades de consultas realizadas pela ONU, redes globais de
organizações e movimentos sociais tais como a campanha internacional Beyond
2015, GCAP – Global Call for Action Against Poverty, FIP – Fórum
Internacional de Plataformas Nacionais de ONGs e CIVICUS – World
Alliance for Citizen Participation, articularam-se de forma
independente nesse debate, e promoveram outras consultas nacionais. No Brasil,
a Abong- Associação Brasileira de ONGs conduziu esse processo no primeiro
semestre de 2013. O resultado, registrado no relatório “O mundo que queremos
pós-2015”, disponível no link http://www.abong.org.br/final/download/pospt.pdf (português) e http://www.abong.org.br/final/download/posen.pdf (inglês), foi lançado em agosto 2013. Apresenta um conjunto
de recomendações para o governo brasileiro e para as Nações Unidas. Foi
entregue na época para os diversos ministérios do governo brasileiro, inclusive
para a Ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, representante do Brasil no
Painel de Alto Nível da ONU.
Para a realização da consulta, a Abong optou pela
implementação de uma estratégia em duas fases sucessivas: a primeira de
visibilidade e engajamento, cujo objetivo principal foi divulgar a campanha, já
que se tratava de assunto pouco conhecido entre organizações do seu campo de
atuação. Nesse primeiro momento, foram definidos os princípios que devem
nortear a elaboração dos marcos de desenvolvimento pós-2015, a exemplo de:
COERÊNCIA: recuperar compromissos já assumidos pelo Brasil nos
tratados e convenções internacionais relacionados ao desenvolvimento,
especialmente com relação àqueles assumidos no âmbito do Ciclo de Conferências
da ONU na década de 1990.
EFETIVIDADE: assegurar espaço para participação da sociedade
civil na implementação, monitoramentoe avaliação do marco de desenvolvimento
pós-2015; garantir compromisso político com o financiamento das metas
acordadas; garantir que as metas cheguem às questões estruturais que impedem o
desenvolvimento.
REPRESENTATIVIDADE:
garantir o protagonismo dos segmentos em situação
de vulnerabilidade na formação do marco de desenvolvimento pós-2015; fazer uso
da capilaridade das organizações e movimentos de defesa de direitos para
garantir pluralidade na participação; fazer uso do trabalho já realizado pelos
movimentos e organizações em temas afetos à consulta.
A segunda fase consistiu na realização de oficinas
temáticas em três grandes cidades brasileiras, de forma articulada com
associadas e organizações e movimentos parceiros. As temáticas das três
oficinas foram respectivamente: Infância e Juventude (Brasília); Enfrentamento
ao Racismo (Salvador); e HIV/Aids e Equidade de Gênero (Recife). No total, 78
organizações, movimentos e redes participaram dessa consulta.
Esse processo de consulta da sociedade civil brasileira
não teve como foco específico as questões de educação, mas diversas
recomendações incluíram essas dimensões. Uma leitura seletiva do relatório
assim permite destacar algumas dessas propostas e destacar problemáticas
essenciais para efetivação do direito à educação, e mais especificamente no que
diz respeito aos segmentos dos jovens e dos adultos.
A questão da universalização da educação,
obviamente, foi apontada como fundamental: “Os novos Objetivos estratégicos do desenvolvimento
devem assegurar o acesso universal à educação de qualidade, laica e gratuita,
independentemente do sexo, idade, etnia, religião, status socioeconômico,
status de imigração, identidade de gênero, orientação sexual, entre outros.”
O acesso à educação deve considerar os grupos mais
vulneráveis, a exemplo das pessoas com deficiência, das mulheres, da população
negra... Para garantir esse acesso, políticas afirmativas devem ser
implementadas, a exemplo das cotas para negros em universidades, ou ainda para
aprendizes em empresas e órgãos públicos. De forma geral, a participação e
inclusão desses grupos tradicionalmente excluídos supõe uma mudança cultural
dentro das instituições. É o que aponta notadamente a seguinte recomendação: “Criar e
implementar mecanismos de combate ao racismo e sexismo institucional, incluindo
as estruturas de governo com a efetiva participação do movimento negro e demais
grupos historicamente fora dos espaços de poder e decisão”.
A valorização da
diversidade humana dentro dos espaços e processos educacionais impõe a
implementação de conteúdos e metodologias que possam responder a este objetivo.
Nesse sentido, há necessidade de “educação
com metodologias que integrem pessoas com deficiência e estimulem o seu
aprendizado” e ainda “ que a educação
atenda às demandas de diferenças culturais: indígenas, comunidades
tradicionais, etc.”. A educação assim deve ser entendida como direito
cultural e impõe que sejam criadas e implementadas “políticas culturais de afirmação da diversidade e da diferença como
mecanismo de enfrentamento e transformação ao ideário de imaginários
excludentes”. Dentre essas políticas, devem ser citadas “políticas públicas de preservação e
valorização dos sítios e espaços históricos da cultura negra”.
A educação deve
abranger diversos campos, a exemplo da nutrição e alimentação adequada, ou
ainda da educação sexual. Nesse sentido, os novos objetivos “devem garantir o acesso à juventude de uma
educação sexual amigável e ampla (inclusive em espaços além da educação
formal), que os permita desafiar normas de gênero nocivas, prevenir-se do HIV e
da violência de gênero, da gravidez precoce e não desejada, planejar suas vidas
e tomar decisões informadas sobre sua sexualidade”.
A dimensão do
acesso à educação também está intrinsecamente ligada ao acesso ao mundo do
trabalho, mais do que ao mercado de trabalho, que se concentra apenas nos seus
aspectos mais formais. Nesse sentido, é necessário “fortalecer e fomentar paradigmas de um modelo de desenvolvimento que
incorpore as formas solidárias de produção e comercialização praticadas por
povos e comunidades tradicionais, tais como, populações negras e indígenas,
assim como a agroecologia, a preservação do meio ambiente e a defesa de direitos”.
Educação e
gestão dos bens comuns também estão ligados. É o que mostra a recomendação
sobre a gestão dos recursos hídricos, que considera “que o papel fundamental das mulheres na gestão dos recursos hídricos da
comunidade pode ser um ponto de entrada eficaz para programas de educação
sanitária e de higiene, que podem ajudar a reduzir a incidência de doenças”.
Educação,
participação, diversidade humana, cultura, mundo do trabalho, alimentação,
direitos humanos, democracia... Todas essas questões estão ligadas,
indissociáveis... Mas as tendências atuais no processo de construção do novo
marco de desenvolvimento deixam dúvidas quanto à capacidade dos governos de
delinear objetivos interligados e tão ambiciosos quanto os defendidos pelas
organizações da sociedade civil, no Brasil e de forma geral no mundo. Infelizmente, o último documento produzido pelo Grupo de Trabalho Aberto da ONU está tentando reduzir o número de pontos em um conjunto de metas de desenvolvimento sustentável. Este documento concentra-se no crescimento como o único fator de desenvolvimento, em detrimento dos direitos humanos e das desigualdades nos países desenvolvidos.
Nessas
condições, a sociedade civil planetária vê-se desafiada, mais do que nunca, a
aumentar sua pressão sobre os governos e os organismos internacionais.
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