segunda-feira, 7 de abril de 2014

A educação no processo de consulta nacional da sociedade civil brasileira sobre agenda pós-2015

Por Damien Hazard
Co-diretor executivo da ABONG – Associação Brasileira de ONGs


Artigo originalmente publicado no "ICAE Virtual Seminar: Education Post 2015".
Para acessar o artigo com traduzido para o inglês, clique aqui. Para acessar a versão em espanhol, clique aqui.



A educação no processo de consulta nacional da sociedade civil brasileira sobre agenda pós-2015
A ABONG – Associação Brasileira de ONGs entrou no processo de discussão da agenda pós-2015 em 2012, por meio de articulações internacionais da sociedade civil latino-americana e planetária. Em paralelo das diferentes modalidades de consultas realizadas pela ONU, redes globais de organizações e movimentos sociais tais como a campanha internacional Beyond 2015, GCAP – Global Call for Action Against Poverty, FIP – Fórum Internacional de Plataformas Nacionais de ONGs e CIVICUS – World Alliance for Citizen Participation, articularam-se de forma independente nesse debate, e promoveram outras consultas nacionais. No Brasil, a Abong- Associação Brasileira de ONGs conduziu esse processo no primeiro semestre de 2013. O resultado, registrado no relatório “O mundo que queremos pós-2015”, disponível no link http://www.abong.org.br/final/download/pospt.pdf (português) e http://www.abong.org.br/final/download/posen.pdf (inglês), foi lançado em agosto 2013. Apresenta um conjunto de recomendações para o governo brasileiro e para as Nações Unidas. Foi entregue na época para os diversos ministérios do governo brasileiro, inclusive para a Ministra do Meio Ambiente Izabella Teixeira, representante do Brasil no Painel de Alto Nível da ONU.
Para a realização da consulta, a Abong optou pela implementação de uma estratégia em duas fases sucessivas: a primeira de visibilidade e engajamento, cujo objetivo principal foi divulgar a campanha, já que se tratava de assunto pouco conhecido entre organizações do seu campo de atuação. Nesse primeiro momento, foram definidos os princípios que devem nortear a elaboração dos marcos de desenvolvimento pós-2015, a exemplo de:
COERÊNCIA: recuperar compromissos já assumidos pelo Brasil nos tratados e convenções internacionais relacionados ao desenvolvimento, especialmente com relação àqueles assumidos no âmbito do Ciclo de Conferências da ONU na década de 1990.
EFETIVIDADE: assegurar espaço para participação da sociedade civil na implementação, monitoramentoe avaliação do marco de desenvolvimento pós-2015; garantir compromisso político com o financiamento das metas acordadas; garantir que as metas cheguem às questões estruturais que impedem o desenvolvimento.
REPRESENTATIVIDADE: garantir o protagonismo dos segmentos em situação de vulnerabilidade na formação do marco de desenvolvimento pós-2015; fazer uso da capilaridade das organizações e movimentos de defesa de direitos para garantir pluralidade na participação; fazer uso do trabalho já realizado pelos movimentos e organizações em temas afetos à consulta.
A segunda fase consistiu na realização de oficinas temáticas em três grandes cidades brasileiras, de forma articulada com associadas e organizações e movimentos parceiros. As temáticas das três oficinas foram respectivamente: Infância e Juventude (Brasília); Enfrentamento ao Racismo (Salvador); e HIV/Aids e Equidade de Gênero (Recife). No total, 78 organizações, movimentos e redes participaram dessa consulta.
Esse processo de consulta da sociedade civil brasileira não teve como foco específico as questões de educação, mas diversas recomendações incluíram essas dimensões. Uma leitura seletiva do relatório assim permite destacar algumas dessas propostas e destacar problemáticas essenciais para efetivação do direito à educação, e mais especificamente no que diz respeito aos segmentos dos jovens e dos adultos.
A questão da universalização da educação, obviamente, foi apontada como fundamental: “Os novos Objetivos estratégicos do desenvolvimento devem assegurar o acesso universal à educação de qualidade, laica e gratuita, independentemente do sexo, idade, etnia, religião, status socioeconômico, status de imigração, identidade de gênero, orientação sexual, entre outros.”
O acesso à educação deve considerar os grupos mais vulneráveis, a exemplo das pessoas com deficiência, das mulheres, da população negra... Para garantir esse acesso, políticas afirmativas devem ser implementadas, a exemplo das cotas para negros em universidades, ou ainda para aprendizes em empresas e órgãos públicos. De forma geral, a participação e inclusão desses grupos tradicionalmente excluídos supõe uma mudança cultural dentro das instituições. É o que aponta notadamente a seguinte recomendação: “Criar e implementar mecanismos de combate ao racismo e sexismo institucional, incluindo as estruturas de governo com a efetiva participação do movimento negro e demais grupos historicamente fora dos espaços de poder e decisão”.
A valorização da diversidade humana dentro dos espaços e processos educacionais impõe a implementação de conteúdos e metodologias que possam responder a este objetivo. Nesse sentido, há necessidade de “educação com metodologias que integrem pessoas com deficiência e estimulem o seu aprendizado” e ainda “ que a educação atenda às demandas de diferenças culturais: indígenas, comunidades tradicionais, etc.”. A educação assim deve ser entendida como direito cultural e impõe que sejam criadas e implementadas “políticas culturais de afirmação da diversidade e da diferença como mecanismo de enfrentamento e transformação ao ideário de imaginários excludentes”. Dentre essas políticas, devem ser citadas “políticas públicas de preservação e valorização dos sítios e espaços históricos da cultura negra”.
A educação deve abranger diversos campos, a exemplo da nutrição e alimentação adequada, ou ainda da educação sexual. Nesse sentido, os novos objetivos “devem garantir o acesso à juventude de uma educação sexual amigável e ampla (inclusive em espaços além da educação formal), que os permita desafiar normas de gênero nocivas, prevenir-se do HIV e da violência de gênero, da gravidez precoce e não desejada, planejar suas vidas e tomar decisões informadas sobre sua sexualidade”.
A dimensão do acesso à educação também está intrinsecamente ligada ao acesso ao mundo do trabalho, mais do que ao mercado de trabalho, que se concentra apenas nos seus aspectos mais formais. Nesse sentido, é necessário “fortalecer e fomentar paradigmas de um modelo de desenvolvimento que incorpore as formas solidárias de produção e comercialização praticadas por povos e comunidades tradicionais, tais como, populações negras e indígenas, assim como a agroecologia, a preservação do meio ambiente e a defesa de direitos”.
Educação e gestão dos bens comuns também estão ligados. É o que mostra a recomendação sobre a gestão dos recursos hídricos, que considera “que o papel fundamental das mulheres na gestão dos recursos hídricos da comunidade pode ser um ponto de entrada eficaz para programas de educação sanitária e de higiene, que podem ajudar a reduzir a incidência de doenças”.
Educação, participação, diversidade humana, cultura, mundo do trabalho, alimentação, direitos humanos, democracia... Todas essas questões estão ligadas, indissociáveis... Mas as tendências atuais no processo de construção do novo marco de desenvolvimento deixam dúvidas quanto à capacidade dos governos de delinear objetivos interligados e tão ambiciosos quanto os defendidos pelas organizações da sociedade civil, no Brasil e de forma geral no mundo. Infelizmente, o último documento produzido pelo Grupo de Trabalho Aberto da ONU está tentando reduzir o número de pontos em um conjunto de metas de desenvolvimento sustentável. Este documento concentra-se no crescimento como o único fator de desenvolvimento, em detrimento dos direitos humanos e das desigualdades nos países desenvolvidos.
Nessas condições, a sociedade civil planetária vê-se desafiada, mais do que nunca, a aumentar sua pressão sobre os governos e os organismos internacionais.

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