sexta-feira, 6 de março de 2015

(I)lógica da violência urbana: uns nascem para matar e outros nascem para morrer. E ponto final. Final?

Imagens da Audiência Pública promovida pela OAB-BA

Calor. Tensão. Vaias. Aplausos. Gritos. Ameaças. Provocações. Nas falas dos que tiveram acesso ao microfone, notou-se lucidez e pertinência em algumas. Desrespeito e violência em outras. Na plateia, as provocações eram constantes. Policiais, sem farda, formavam parte do público, também composto por estudantes, advogados, representantes de organizações não governamentais e movimentos sociais, jornalistas, professores universitários. Homens, mulheres de diversas idades. Cerca de 200 pessoas estavam dentro do auditório e mais umas 100 do lado de fora. Esse foi o cenário da Audiência Pública ocorrida na manhã do dia 26 de fevereiro, na sede da OAB, na Piedade, Salvador, intitulada “A ação da Rondesp no Cabula: limites para o uso da força da Polícia Militar”. 

Amontoada entre os presentes me vi literalmente prensada entre policiais militares. Eles queriam falar. “Moça, escute uma coisa, você quer seus familiares mortos? Não quer. Então, vocês têm que deixar a gente fazer o nosso trabalho”. Com dois, menos inflamados, consegui iniciar um diálogo. Um deles disse em tom de desabafo: “entrei na PM porque tinha esse sonho desde criança. Hoje, os meninos não querem mais ser policiais. A sociedade perdeu a moral”. Provoquei o cidadão - negro e jovem – deveria ter no máximo 30 anos -, tentando fazê-lo compreender que a lógica mocinho-bandido, bom-e-mau funciona nos contos de fadas, mas não se aplica à vida real. “Você não percebe que também é vítima?”, retruquei. “Eu sei. Sou negro e pobre. Igual a esses bandidos que morreram. Também não temos nossos direitos respeitados. Mas estamos ali para cumprir o nosso papel”, me disse. Inferi: “Ok. E qual é o seu papel?”. Ele respondeu: “acabar com os criminosos, os maconheiros, esses drogados. Custe o que custar. E voltar vivo para casa. Você quer morrer? Claro que não, moça. Ninguém quer”. Veredito dado. 

Esta é a lógica cruel que costura as relações em nossa sociedade. A lógica da guerra que prevalece nas políticas de segurança pública, na atuação policial, na mídia sensacionalista, nos discursos religiosos e político-partidários. Mesma lógica que naturaliza a morte de jovens negros moradores das periferias, que viram estatística, assim como naturaliza os treinamentos ditatoriais que acontecem nos quartéis, os baixos salários dos policiais, entre outros desrespeitos denunciados pela categoria. A lógica da guerra é a que move. É a que mata. É a que extermina vidas e extermina vozes e possibilidades de construção de uma realidade melhor, mais digna e humana. Lógica que permite que os policiais envolvidos na operação realizada pela Rondesp no Cabula – que acabou com 12 mortos – continuem a trabalhar, normalmente, no dia seguinte ao ocorrido. Inclusive, sem nenhum acompanhamento psicológico. Afinal, matar não é normal. Ou, pelo menos, não deveria ser. 

Lógica que em boa parte dos casos que envolve morte de moradores de bairros populares contribui para engavetar as apurações. Lógica que certamente não vai ser nunca compreendida pelas mulheres que estavam sentadas na primeira fileira do auditório da OAB naquela manhã de quinta-feira. Mães, avós, tias dos jovens mortos durante a operação policial, elas permaneceram ali, na frente, caladas, escutando as falas mais acolhedoras – como a de uma militante do movimento feminista que ressaltou que quando jovens morrem, as mães – mulheres, negras – morrem junto, pouco a pouco, sem amparo – às mais agressivas, como a de um representante dos policiais que pediu: “parem de chamar esses bandidos de jovens, meninos. São marginais. Bandidos”. Fiquei pensando o que estava passando pela cabeça daquelas mulheres que muito provavelmente talvez estivessem participando pela primeira vez de uma audiência pública. Um espaço democrático, que permitiu que divergências fossem expostas, descortinando alguns véus de cinismo que perpassam a nossa sociedade. Espaço que permitiu o início de um diálogo, certamente o único caminho possível para mudar essa (i)lógica.

Bruna Hercog é soteropolitana, jornalista, associada da ONG Vida Brasil e assessora de comunicação em projetos de Segurança Cidadã do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD/ONU).

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